E foi aí que eu me afoguei em um copo de cerveja
- COCINIERO
- há 2 dias
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Temos memórias de nosso passado, da nossa infância, que são revividas ao escutarmos uma música, um cheiro, uma comida, um sabor, ou até mesmo um local. Mas também temos registros fortes que se escondem em um emaranhado de nossa mente, que nem sempre temos total consciência.
Eu tenho fortes registros por um gole errado.
Eu tinha como oito ou dez anos, uma mesa qualquer, um copo aparentemente honesto, totalmente suado. Líquido dourado, bolhas, aquele ar de festa. Tudo indicava amor. E eu, criança confiante que era, dei o gole. Sem rodeios. Sem protocolo. Sem cheiro prévio. A vida era simples.
Mas não era guaraná.
Era cerveja.
Cilada, cilada, cilada.
E foi ali, de uma vez só, que aprendi duas lições importantes: a primeira, que a expectativa é um veneno sutil. E a segunda, que nem tudo que brilha tem açúcar.
Curiosamente, eu só fui entender o peso daquele momento muito tempo depois. Por anos, simplesmente aceitei que não gostava de cerveja. Uma daquelas verdades pessoais que a gente repete sem muito questionamento, como não gostar de uma música ou não comer jiló.
Mas investigando 'sabor' — como um fenômeno que mistura química, neurociência, biologia, afeto, cultura e, às vezes, traumas domésticos embutidos — aconteceu quase que uma sessão de terapia gustativa.
Uma regressão culinária. Aos poucos, a lembrança veio com nitidez quase de cinema: churrasco de domingo na casa dos meus avós, muita gente, muitos copos e pratos espalhados. Crianças correndo, adultos rindo, aquele caos afetivo típico de almoços em família. E então, o gole.
Eu lembrei da textura do copo de vidro. Do toque gelado. E da bebida, que entrou rápida, estranha, amarga — galopando garganta abaixo como um cavalo pé de pano, desajeitado, porém eficiente. A cena inteira, em câmera lenta. E eu ali, em silêncio, sem entender que teriam consequências desta dor.
Por mais de trinta anos, tentei gostar de cerveja. Em bares, em viagens, em festas. Tentei por pressão social, por curiosidade, por pesquisa. A cada tentativa, um novo gole. E a cada gole, o mesmo aviso interno: “isso aí a gente já julgou, obrigado.”
A explicação, claro, não é só birra. É ciência. E existe um termo técnico para isso: aversão gustativa condicionada, investigada pela primeira vez nos anos 1950 por John García.
Essa associação ocorre porque o cérebro vincula o sabor do alimento à experiência emocional negativa vivenciada, ele registra como um alerta para futuras situações. E se o sabor for o veículo do engano, recebe uma etiqueta bem clara: “não repetir.”
O paladar é generoso, mas tem memória. E a memória gustativa é especialmente sensível ao trauma. Basta um vacilo, o cérebro cria uma reação automática, com direito a cópia de segurança. E o interessante é que o trauma pode ser transferido por semelhança: o mesmo perfil de sabor, um molho parecido, uma textura… tudo entra no radar.
Sabor não é só o que a gente come. É o que acontece quando todas as variáveis se misturam. Mais do que o ingrediente em si, o cérebro registra o conjunto da obra: o gosto, o contexto, o cheiro, a temperatura, o estado emocional, o som ambiente, experiências passadas. Envolve uma rede complexa, interligada e muitas vezes imprevisível. Uma vez cruzadas as conexões, é difícil desfazer o nó.
Então, sabor, no fim, é como um mensageiro. Mas, como todo bom mensageiro em filme ruim, é quem acaba levando a culpa.
Mas o corpo recorda, até mesmo quando a mente não pode. O corpo aprende a evitar o que o fez mal, mesmo que tenha sido só uma vez, e mesmo que o culpado tenha sido a temperatura, a bactéria ou o ambiente, e não o sabor em si.
Essa aversão não ocorre apenas pela associação psicológica, mas também pela fisiológica. Tive outras provas disso na vida, com um prato clássico italiano: carpaccio. Carne crua, molho à base de alcaparras, mostarda e queijo parmesão. Um prato elegante, até que me presenteou com uma intoxicação monstruosa. Desde então, não só o carpaccio, mas qualquer coisa com um gosto, aroma ou aparência parecida me deixa de orelha em pé. Até hoje, quando sinto essa mistura específica, meu corpo parece reagir antes de mim.
E o mais curioso: isso tudo faz sentido evolutivamente. Esse efeito também é conhecido como síndrome do molho béarnaise. O termo foi cunhado pelo psicólogo Martin Seligman, que desenvolveu uma aversão a esse molho francês após sofrer uma gastroenterite, mesmo que a causa da doença não estivesse relacionada ao alimento.
Isso tudo, claro, é só uma parte da equação.
Nem todo desgosto vem de trauma. Existem fatores genéticos, fisiológicos, culturais. E quando digo “culturais”, não é só sobre o país ou cidade onde você nasceu. É antes disso.
Mas talvez o mais importante disso tudo seja entender que sabor não é apenas um dado físico, objetivo, presente nos alimentos. Não é o sabor da cebola ou do coentro, isolados num canto. É o conjunto de tudo aquilo que acontece quando o sabor encontra o cérebro com memória, com afeto, com medo, com surpresa.
E que, às vezes, basta um único gole mal interpretado para mudar a relação com uma bebida por uma vida inteira e que, de alguma forma, molda nossa identidade.
Talvez um dia eu goste de cerveja. Talvez não.
Mas se você me vir recusando um copo, em pleno verão, cercado de amigos sorridentes, não julgue.
É que, em algum churrasco dos anos 90, ao som de pagode e carne bem passada, eu me afoguei num copo de cerveja.
E o gosto ainda não passou.
Se você é curioso ou quer mais detalhes sobre os temas abordados:
1. J. Garcia et al., Conditioned Aversion to Saccharin Resulting from Exposure to Gamma Radiation.Science 122,157-158(1955).DOI:10.1126/science.122.3160.157
2. Shepherd, G. M. (2012). Neurogastronomy: How the Brain Creates Flavor and Why It Matters. Columbia University Press.
3.Seligman, M. E. P. (2011). Florescer: Uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e do bem-estar (M. da Costa, Trad.). Objetiva. (Obra original publicada em 2011)
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